CRÓNICAS DO VALE DE SANTARÉM -7 DE OUTUBRO DE 1953

7 de Outubro de 1953. Quarta-feira. Três semanas antes já tu andavas naquela azáfama de comprar a mala, a ardósia, a pena, o caderno de duas linhas, mais a caneta e o aparo, um lápis e uma borracha, que era cor-de-vinho e desapareceu num farete, primeiro porque muito usada, depois porque foi parar a outras mãos e não mais voltou… Ah, e o livro da primeira classe, novinho, com aquele cheiro que me ficou para sempre. Tu a comprares as coisas e eu a ver, a admirar tudo e a pensar: vou mesmo para a escola… Uns dias antes vestiste-me a bata, recuaste uns dois metros e puseste-te a olhar para mim assim equipado, a altura da bainha estava bem, depois passaste a mão pelo meu nome, escreveste as iniciais a lápis na sarja branca, do lado esquerdo, levaste um tempinho a dar-lhe cor, lá ficaram as tuas letras desenhadas com linha a vermelho, assim foi até ser bata da escola primária, desceste a bainha todos os anos, até à quarta-classe, mas não foi preciso descer muito, que eu era pequenote, só mais tarde comecei a espigar um pouco…
Tudo preparado, a noite foi agitada. Como seria a escola, de que as minhas irmãs já me vinham falando?… Que outros rapazes iria eu encontrar? Havias-me falado, mãe, de alguns… do filho desta, daquela, disseras até os seus nomes, mas… Na manhã do dia 7 fui à sala a que chamávamos casa de fora, só para pôr a mala a tiracolo, lá dentro tudo o que era preciso, lembro-me de me pôr a cismar que a partir dali havia uma coisa nova a que eu estaria ligado: “a coisa mala da escola”, ferramenta e símbolo da “coisa escola”. Pousei a mala na cadeira, pouco depois almoçámos, e a seguir, pela primeira vez, eu iria para a escola.
7 de Outubro de 1953. Descemos do cabeço até ao vale, havia sol e viemos pelo carreiro que bordejava o terreno do Brasileiro, passámos frente à Quinta das Rebelas, e a senhora à janela, a perguntar “então o seu menino já vai para a escola?!…” e tu “vai sim Dona Mimi…” disseram adeus e lá fomos, ficou ela a sorrir, continuámos, outras mães e alguns meninos e meninas pela mão, a mesma pergunta de umas para as outras, agora noutros modos de falar, “ah! Emilha, atão melher, o tê rapazito tamém vai hoje p’rà escola?…” e tu “sim, sim… pois, pois…” e os olhos delas pregados em mim, uns palpites sobre parecenças ou lá o que fosse e eu, pela tua mão, a querer que te despachasses na conversa, a mala a tiracolo a bambolear, um som oco que vinha de dentro, ainda hoje me ressoa na cabeça.
Quase duas horas da tarde. Passamos frente à Albertina Vindima, ela lá em cima, a mirar aquela aparição de batas brancas em corpos de meninos a polvilhar a estrada de terra batida, as meninas também, como se fossem borboletas, laçarotes na cabeça, as mãos das mães a conduzirem-nas, orgulhosas, trocaste breves palavras e sorrisos com a Albertina e mais duas ou três, depois avistámos um montinho de gente pequenina, mais batas brancas, junto à porta da escola, eram os que aguardavam a entrada para a 1ª classe, que os da 3ª já estavam lá dentro, esperavam por nós, decerto recordando o que teriam vivido no seu primeiro dia.
Fomo-nos chegando ao pé do grupo, tu muito faladora com outras mães, tu e elas como se fossem crianças, e eu tão pequeno no meio de todos, alguns a fazerem-me perguntas e eu calado, a timidez a comandar a minha cabeça e os meus gestos, eu encostado às tuas saias, os rapazitos entreolhando-se pela primeira vez, algum nervosismo, até que a professora começou a fazer a chamada, a primeira de todas as chamadas da nossa vida, com os nomes completos, nomes que depois fomos fixando, mas em formato pequeno… Ângelo, Celestino, Francisco, que passou a ser o Chiquinho do Correio, Fernando Garcês, Isaac, Joaquim Rafael, Joaquim Júlio, Manuel Figueiras, Manuel Reinaldo, Orlando, Rui Sá e outros, que a minha memória já não regista.
Um a um lá fomos entrando, a porta era estreita, havia uns degraus de madeira, de madeira era também o soalho, lá estava a Dona Augusta, que iria ser a nossa professora, era alta e bonita, de cabelo preto e bata branca, com um sorriso a dizer os nomes, as mães a largarem as mãos dos filhos, e tu, mãe, deste-me um beijo e encaminhaste-me, como quem solta um pássaro, uma flor, talvez um sonho, quem sabe a reviveres o teu primeiro dia de escola primária… “anda, vai…” eu a subir os degraus, um certo burburinho lá dentro, o Zé Leirião a levantar-se e a dizer em voz alta “anda cá que és meu primo”, nem ele sabe como foi bom resgatar-me daquele pequeno embaraço de “e agora para onde é que eu vou?”, ficámos algum tempo na mesma carteira, depois a professora desfez esse aconchego, não recordo se foi no dia seguinte que houve a separação, ele já era da terceira, e os da terceira ficaram nas carteiras do lado esquerdo de quem entra, os da primeira ficaram nas da direita, e foi assim até ao fim do ano escolar.
19 de Outubro de 2013, dia do convívio anual dos antigos alunos da nossa escola. Aqui estamos, mãe, contigo, que também andaste na nossa Escola Primária Aristides Graça, da primeira à quarta-classe, com a professora Dona Augusta também, de quem sabias o nome completo: “Leopoldina Augusta de Carvalho Cunha e Conde, casada com o Sr. Conde, que tinha uma torrefacção de café”. Aqui estás, mãe, e contigo e connosco outras amigas de quem me falavas, meninas da tua idade, que também um dia transpuseram a porta da nossa escola… “era a Estrudes do Artur Tendeiro, a Estrudes do João Vítor, a tia da Dina, a mãe do Joaquim Júlio”, e mais eu não recordo, e dos rapazes lembravas-te do tio João Sá, do Edmundo, do Viriato Ferreira… já quase todos partiram, que a vida, como sabemos, tem a vida e o seu contrário.
Hoje, 19 de Outubro de 2013, a ti homenageio, mãe de nove, todos andaram na nossa escola. Nove. Toneladas e toneladas de trabalho, de sacrifícios, de preocupações, também algumas alegrias. A ti homenageio, Mãe, como a todas as Mães que um dia levaram ou viram partir os filhos para a escola, pela primeira vez. Homenageio os professores que os receberam, meninas e meninos no momento inicial da aprendizagem escolar daqueles tempos, que hoje tudo começa mais cedo e é tão diferente… Homenageio, enfim, a nossa Escola. Quando por ali passo, olho para ela como se não fosse edifício, mas um ser como nós, com vida dentro, uma mãe já muito idosa, talvez até mais que avó – fará cem anos em 2015 – que guarda em si, como um tesouro, os olhares, os sorrisos, os sonhos das crianças e dos professores que por ali passaram. Desde 1915. E foram tantas, tantas crianças do nosso Vale. Obrigado, Escola Primária Aristides Graça.
Manuel João Sá
19 Outubro 2013
Por ocasião do Convívio de 2015 dos Antigos Alunos da Escola Primária Aristides Graça – Vale de Santarém.

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Manuel João Sá

Autor: 60emais

Português.

9 opiniões sobre “CRÓNICAS DO VALE DE SANTARÉM -7 DE OUTUBRO DE 1953”

  1. Que texto bonito.
    Excelente narrativa Sr. Manuel Sá.
    Parabéns pelo empenho, dedicação e Amor que tem pela sua/nossa Escola.
    BEM HAJA
    Cumprimentos
    Educadora Aida Faria

  2. Muito lhe agradeço, professora Aida Faria. Dia 24 Set é nossa convidada, para o convívio anual dos antigos alunos. Com muito gosto.

  3. Olá Manuel Sá, meu primo e grande amigo.
    Que bom para nós podermos desfrutar desta narrativa, excelente, que nos transporta para os primeiros e mais importantes momentos das nossas vidas, e que de certa forma, são o início de aprendizagem de como utilizar e desenvolver o nosso pensamento de forma estruturada, que nos leva a ponderamos e decidirmos as escolhas que fizermos para o nosso futuro. Por favor, continua a escrever …
    Um Grande ABRAÇO.
    José Leirião

  4. Foi com uma grande nostalgie que li as tuas belles recordaçoes que foram as minhas num outro contexte mas o amor foi o mesmo !!bravo et esperando un livre para a proxima edition !!!

  5. Comentário de António Fagulha, por mail:
    Mais uma cronica maravilhosa. Fizeste com que recordasse também o meu primeiro dia de aulas. Como era tudo diferente. Ainda bem que ninguém hoje vai para a escola descalço; eram tempos difíceis. O meu grande abraço.

  6. Comentário de António Nunes Marques, por mail:
    Olá Manuel João,

    Obrigado pelos textos que me proporcionas ler.
    A saúde não me permite ter disposição para ler todos, de imediato. Mas o relacionado com o teu 1º dia de escola primária, com uma bonita homenagem à tua mãe, e o relacionado com o “velho Máximo” (irmão do Ginbrinhas da Farmácia), não pude deixar de lhe dar a atenção devida.
    Lembro-me perfeitamente do Sr. Conde, da torrefacção, mas não tenho a menor ideia da sua mulher, nem como pessoa nem como professora.
    Conta-se do Sr. Conde, que viajava para Lisboa, de comboio, com alguma frequência, sempre se deslocava para a estação nas suas calmas e que um dia alguém lhe terá dito: – “Sr. Conde vá um pouco mais depressa, porque o comboio já está a chegar. E ele terá respondido “atrás deste vem outro”, sem ter acelerado o seu passo.
    Todas as outras personagens, são-me absolutamente familiares.
    Um abraço
    A.Marques

  7. Amigo
    Fizeste-me recordar um dia, o primeiro dia importante da minha vida, mas já quase esquecido nas sombras do passado. A bata branca, que atenuava as diferenças sociais, era um símbolo e o nervosismo de subir os degraus de madeira voltou com a mesma intensidade como se tivesse sido agora.
    Não sei quando foi, mas sei que a professora te colocou, a ti e a mim, na mesma carteira onde passámos quatro anos juntos. Ela não poderia adivinhar que esse gesto (aleatório, digo eu) iria sedimentar uma amizade que ainda hoje perdura.

    Obrigado pela lembrança.

    Reinaldo

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