CRÓNICAS DO VALE DE SANTARÉM – NOS 61 ANOS DA RESTAURAÇÃO DA SOCIEDADE RECREATIVA OPERÁRIA

1954.

Dia 1 de Dezembro, domingo. Quase três da tarde. Os homens andam de um lado para o outro, nos trabalhos de carpintaria, de pedreiro, de pintura, espalhados pelo espaço em obras. É uma azáfama, em grupo. Há vozes que se propagam em eco, naquele espaço amplo, que serviu para acomodar bestas e como palheiro. Vozes. Uns a comandar, outros a conversar, um a assobiar enquanto assenta os tacos de madeira, um a um, sobre a calda de cimento, os tacos a ficarem encostadinhos uns aos outros, depois o homem vai-lhes dando uns toques, com o cabo da pá, como quem os aconchega melhor, e assim o piso da sala se vai completando, está a ficar bonita, a sala. O palco, mais ao fundo, deu grande trabalheira, mas está pronto, veio mesmo de fora um especialista para orientar, que aquilo era coisa exigente, mas os carpinteiros saíram-se bem. Agora o Júlio “Pé-Coxo” anda quase de gatas a assentar os últimos tacos, ao lado o cunhado Rafael, também pedreiro, mais calmo e cerebral na função, é ele que, tirando o lápis de trás da orelha, se põe a traçar a linha onde vão assentar o separador entre o espaço de baile e o de convívio dos homens e rapazes, que as mulheres hão-de ficar sentadas em cadeiras, em volta, junto às paredes do U, as que têm filhas hão-de pôr-se atentas, filhas a seu lado ou ao colo ainda, aguardando o convite dos rapazes na forma de “a menina quer dançar?”, mas isso será quando tudo estiver pronto, no dia da inauguração das novas instalações da Sociedade Recreativa Operária do Vale, que foi fundada em 2 de Fevereiro de 1929, há mais de vinte e cinco anos.

Está frio. Pelas janelas, viradas a poente, parte ainda por instalar, entra o sol da tarde, um clarão amarelo e límpido, parece tudo estar quieto lá fora, no horizonte uns farrapos de nuvens, e para lá das palmeiras da escola primária vêem-se as palmeiras da quinta das Rebellas. A sala está cheia de luz, no ar os sons dos trabalhos, o eco das vozes, alguns falam, outros gritam, outros brincam, os homens parecem crianças com um brinquedo nas mãos, o brinquedo é só um mas é de todos, é a Sociedade Recreativa Operária. Há um espelho enorme para colocar na sala que vai ser de baile, mas ainda não se sabe em que parede vai ficar, há pouco houve nova discussão, porém não se chegou à decisão. O Américo Azevedo aparece, está de fato-de-macaco de ganga azul, que é assim também que anda nos trabalhos de ferreiro lá na Fonte Boa, tem o rosto sanguíneo que todos conhecem, a voz sai-lhe forte porém com um leve enrolar da língua, chega ao pé dos que discutem o assunto do espelho e lembra que os grampos para o suspender só serão colocados depois de decidirem, que ele vai ficar à espera, que é melhor eles despacharem-se, e nisto chega o Chico Patrício a dar mais uma opinião e é quando o Manel Sá põe fim às dúvidas dizendo “já tínhamos decidido que era ali” e apontou, e foi assim que ficou, na parede virada a poente. Entretanto aparelham-se algumas tábuas, as aparas a saírem enroladas das garlopas e o ambiente a ficar também com cheiro a pinho, misturando-se com o cheiro a tintas, enquanto do bar começa a vir perfume de chouriço assado, veio do talho do Pedro e daqui a pouco há-de juntar-se ao pão do Daniel, ele próprio o levou ao grupo, pois é domingo e as padarias estão fechadas. Mas há outros sons. Há uma enorme telefonia que veio recentemente de Lisboa, foi instalada num suporte de madeira, na parede junto ao Gabinete da Direcção, que é assim que vai chamar-se àquele espaço, as letras estão desenhadas a lápis, falta só pintar. A telefonia é da marca Schaub Lorenz e veio da AEG, de Lisboa, da Rua da Palma, foi o João Sá que a trouxe na semana passada, tem um tecido sedoso cor de ouro a tapar a saída do som, põe-se lá a mão, disse-me o Joaquim “Garrafão”, e sente-se isso, o som a sair, e era verdade. Dá-se o caso de este domingo ser dia da inauguração do Estádio do Benfica, a que deram o nome de Estádio da Luz. Por mim, ouvindo o relato, o ruído do estádio a sobrepor-se, bem alto, no meio daquela azáfama dos homens na nova Sociedade, interessa-me estar perto da telefonia, uma caixa de madeira em castanho brilhante, é do verniz, e é tão bonita, tem teclas cor de marfim e uns grandes botões redondos também da mesma cor, debruados a dourado. Ao lado do tecido que dá saída ao som, a telefonia tem um espécie de olho grande, é azul e tem dois círculos concêntricos, ou assim me parece. O Joaquim “Garrafão” já me disse que aquele olho é que ajuda a sincronizar o posto, o que me deixa quase na mesma, a minha curiosidade a propósito de coisas técnicas é pouco mais que zero. O pior de tudo é que, quer eu apure o ouvido quer não, o Benfica continua a perder por um a zero e daqui a pouco, pelo andar do relato, o Artur Agostinho estará a gritar novo golo do Porto, que o Benfica está mesmo a jogar mal, é a minha conclusão. Na sala em obras, os benfiquistas estão agora a sofrer a troça dos sportinguistas, mas dizem que não faz mal, que o que importa é terem um estádio novo como outro não há. A tarde vai terminar com a derrota do Benfica por três a um.

A inauguração das novas instalações está próxima. Vai ser dia 19 de Dezembro, um domingo. A sala principal, o palco e o bar pouco mais trabalho irão dar, são só mais alguns arremates de pedreiro e de pintura, mas o Rafael lembra que os acabamentos levam sempre bastante tempo, talvez seja preciso jornadas nocturnas de trabalho para acabarem a tempo. Além disso, há ainda mais uns pequenos problemas de luz, e nos sanitários, na sala da direcção e na sala de jogos, os trabalhos estão atrasados. Mas tudo há-de estar pronto para a festa do primeiro dia da nova SRO, depois da decisão de sair do primeiro andar do prédio do Eduardo das bicicletas. Vai haver discursos, alguns convidados e uma orquestra, coisa nunca vista. Há mulheres e raparigas que têm a missão de fazer bolos e petiscos, para um beberete na tarde do dia da inauguração. Há-de haver missa a lembrar os sócios falecidos. Há-de haver um baile cheio de vida e cor. Após a abertura solene da sessão, os pares vão rodar, alegres, vistosos, felizes, garbosos, cheios de calor e sentimento, noite fora, cada mãe cada pai vendo sua filha mais bonita, rainha do baile, e todas o serão. Depois, terminada a festa, os dirigentes da Sociedade Recreativa Operária hão-de comungar da ideia de que valeu a pena tão grande esforço, tão forte determinação, pois a colectividade está de pé, fortalecida. É o maior símbolo do associativismo no Vale de Santarém e assim há-de continuar.

Manuel João Sá

18 Dez. 2015

SRO2