O ribeiro da minha aldeia

Vale de Santarém é a minha terra. Este regato, a que chamamos “rio das patas”, atravessa toda a vila. Nasce a poente e desagua no rio Maior, afluente do Tejo. Parece uma insignificância, este pequeno e estreito curso de água, que não chegará a ter 5 km, entre a nascente e a foz. Muito terá contribuído para que, nas suas margens férteis, tivesse “nascido” a nossa terra, referenciada desde a Idade Média – é de 1367 o primeiro documento que se conhece do lugar, que até 1758 denominou-se Vale do Soeiro Pisão, também conhecido por Vale do Soeiro Tição.

Ao longo deste ribeiro, as hortas foram o recurso de muitos, que usavam as águas para a rega. O Vale de Santarém era o lugar de mais hortas no Ribatejo. Neste ribeiro, as mulheres lavavam as roupas, que punham a secar ali mesmo. Ao longo deste ribeiro, começaram namoricos, fizeram-se casamentos, crianças aprenderam a andar, a brincar, a nadar, a semear, a colher e, assim, aprenderam sobre fases importantes da Natureza e da Vida. Aqui houve pesca de enguias e tratamento de tremoços para a venda. Ao longo do nosso “rio” houve nove azenhas, a que chamávamos “moinhos de água”. Ao longo do nosso rio houve troca, partilha, ajuda, solidariedade, mas também tristezas e alegrias, lutas e fraternidade.

O nosso ribeiro tem, ainda, muitos nomes, consoante os locais onde as mulheres iam lavar, mas é sempre o nosso rio. Conseguimos protegê-lo, até, contra a instalação de uma fábrica de tripas quase na sua nascente e que, durante uns anos, o encheu de poluição, e por isso o povo se levantou contra tal ataque, e venceu.

Este nosso rio, que é, aparentemente, um insignificante ribeiro, é muito importante para mim, não só por razões históricas; como o rio Maior, ou o rio Tejo, para onde vão as suas águas. Ele é um importante membro do sistema de veias da Natureza, como as veias e vasos do corpo humano são decisivos para a vida de cada um de nós.

O ribeiro da minha aldeia, tão insignificante (aparentemente) deve ser mantido, preservado, protegido, cuidado, respeitado. Como também o devem ser, os rios para onde se dirigem as suas águas: o rio Maior e o Tejo, que seguem para o grande oceano. 
O que de bem fizermos à Natureza, faremos a nós mesmos, aos nossos semelhantes, e a todos os seres vivos. Quando passo por ali, pelo ribeiro da minha terra, já não penso só no passado, nas minhas memórias, no que lá vivi e aprendi (e foi muito) mas penso no presente e, sobretudo, no futuro. A isso dedico uma parte da minha vida. Enquanto vida houver, claro.

Manuel João Sá

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Ribeiro que atravessa o Vale de Santarém, na zona de “rio da quinta” e “rio dos loureiros”. 2018. Foto de Manuel Sá.

 

O anjo

Pouco passava do meio da tarde. Estávamos sentados na borda da pia onde os animais, ofegantes, paravam para beber, sorvendo, quase em silêncio, grande quantidade de água da Fonte das Três Bicas. O Verão ia sufocante. O sol lá estava, bem alto, uma auréola baça em redor. No alcatrão, as ondas de calor produziam a ilusão de labaredas, era preciso semicerrar os olhos para ver ao longe. A aldeia parecia, àquela hora, um fantasma silencioso: paredes brancas, trânsito quase nenhum, uma ou outra pessoa, esquiva, caminhava, aproveitando as sombras, escassas. Só nós estávamos ali, meia dúzia de rapazes, o mais velho talvez tivesse nove anos. Para combater o calor púnhamos a cabeça debaixo das bicas, ou mergulhávamos, com prazer, as pernas na pia, enquanto os animais não chegavam.

Ao longe, na curva da estrada, rente ao canavial, começou então a aparecer, aos poucos, uma carroça diferente. Ao aproximar-se, pudemos ver melhor: um casal, três rapazes e uma rapariga. Mais atrás, com um rafeiro ao lado, caminhava o rapaz mais velho. A mulher e as outras crianças vinham em cima da carroça, sobre uma cobertura de lona escura, já esburacada. Dos lados da carroça pendiam panelas, uma escada, cordas, madeiras e outros apetrechos. E, no cimo de tudo, por detrás da mulher e das crianças, uma coisa extraordinária: um feixe de moinhos de papel, uma infinidade de cores, girando, girando, enquanto a carroça avançava.

Logo que chegaram junto à pia, a mula farejou a água e pôs-se a beber, em longos goles, víamos-lhe os músculos do pescoço, a funcionar. Moscas em volta, a assentarem no dorso da mula, a picarem-na, e ela a tentar afastá-las, com estremeções na pele castanha, ou com o rabo, inquieta, e nós a olharmos para tudo aquilo. Surpreendidos com a aparição, começámos a rodear a carroça. Toda a nossa atenção ia agora para a descoberta, em pormenor, daquela família. Fomos dizendo uns para os outros: “devem ser do circo”. Traziam escadas, duas bolas grandes, cordas grossas, cabos de aço e mais uma data de coisas que nunca tínhamos visto. O homem disse: “Arlindo, vais por essa travessa… lá ao fundo, no largo, é que vamos botar a tenda… aguentas lá, ouviste?” Arlindo era o rapaz mais velho. Saiu dali, a caminho do Largo do Artur Tendeiro, para onde levou os moinhos, mais o rafeiro, que o seguia correndo, mas era como se fosse aos saltinhos. Enquanto o Arlindo caminhava, os moinhos rodavam um pouco: era uma lindíssima girândola de cores, sob o sol abrasador.

Fui a correr para casa dos meus avós, no Rio das Patas, onde estava há dois dias. Contei ao meu avô tudo o que vira e ele disse “são os saltimbancos”, e explicou-me que era “um circo mais pequeno”, e que à noite íamos lá ver, que ele gostava. E assim foi. À noite houve espectáculo. Os pais tocavam e cantavam, os rapazes mais pequenos faziam contorcionismo e a menina tocava tambor e também cantava. O Arlindo trabalhava com as bolas enormes e também atravessava um arame grosso, colocado na horizontal entre grandes estacas, assentes no chão, ele passava bem alto, mesmo por cima das nossas cabeças. Tinha uma grande vara nas mãos, os braços abertos a segurá-la, era assim que se equilibrava lá em cima, parecia que os pés acariciavam o arame, enquanto se movimentava, primeiro deslizando milímetro a milímetro, a seguir em passinhos curtos, depois mais largos, mas firmes, seguros, sempre com o toque do tambor em fundo, e eu a respirar de alívio quando chegou ao fim do arame. Então pôs um sorriso no rosto, levantou um braço, bem alto, e o público, até ali suspenso, rompeu em aplausos vibrantes. Houve muitas palmas para a família de artistas, e sobretudo para o Arlindo, a quem o pai, no fim da sua arriscada viagem pelo arame chamava repetidamente, em alta voz e em linguagem de circo, “El Arli, o anjo do arame!…”. O povo, olhos postos no pequeno anjo, deixou-lhe por fim, no boné, as moedas da consolação, para o pão do dia seguinte.

Saímos dali e fomos para casa. De noite tive alguns sonhos, à volta das proezas de El Arli e família, e, logo pela manhã, assim que pude, fui até junto da tenda montada pelos saltimbancos. O Arlindo estava a construir moinhos, que vendera quase todos na noite anterior. Pus-me ali, de pé, a observar o que estava a fazer. Levámos algum tempo até chegarmos à conversa, mas depois ele perguntou: “Queres fazer um?…”. “Gostava, mas não sei…”, respondi. O Arlindo sorriu. “Senta-te aqui e vê”, disse-me. Logo de seguida começou a mostrar-me como construía um moinho de papel: a preparação do caniço, o corte do papel, a furação e a aplicação do arame, o remate final e a prova – era preciso soprar nas velas, para ver se girava bem, podia ser que o arame estivesse apertado de mais. Ficámos ali quase toda a manhã, o Arlindo muito desenvolto e artista, construindo os mais bonitos e perfeitos moinhos de papel, eu dando os primeiros passos nessa aprendizagem, que havia de ficar, afinal, para toda a vida.

Nunca mais me encontrei com o Arlindo, mas por vezes é como se o visse: um anjo, deslizando graciosamente pelo arame, traz na boca um sorriso, na mão um encantador moinho de papel, que roda, suave, com a brisa da tarde, vai adiantado o Verão.

Manuel João Sá.

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A Família de Saltimbancos. Autor: Pablo Picasso. Data: 1905. Óleo sobre tela. Está em National Galery of Art, Washington, Estados Unidos da América.

Todos os dias… Dia da Mulher.

TODOS OS DIAS…

Nas entranhas mais profundas da mulher, é ali que a semente da Humanidade começa a germinar, e depois, com desejos de longevidade e felicidade, apesar dos imponderáveis, apesar dos acasos prováveis, apesar de tanto de impensável, a vida ganha a luz do dia. 
Na mulher, pela mulher, a Humanidade se renova e avança, a cada milésimo que passa, e nela e com ela nos continuamos, até ao infinito, na finitude das nossas vidas pessoais. Para sempre, assim será.

Mulher. Mãe. Filha. Irmã. Amante / Amada. Amiga. Namorada… e tantos papéis mais na vossa vida e na vida em vosso redor: em casa, fora de casa, na sociedade. Tantos papéis, para tão pouca recompensa, a vida toda, para milhões de vós – a maioria.

A esta hora, neste preciso segundo, há uma Mãe a quem o leite secou, para o filho agonizante; a doença célere adormeceu, para sempre sua filha; uma bala feriu de morte o filho adolescente, numa guerra qualquer… A esta hora, neste preciso segundo, uma mulher carrega os filhos, a fome, a dor da indiferença, da violência física e verbal, do abandono, do espectro do fim. A esta hora, neste preciso instante, como há milénios, e para sempre, no meio do maior sofrimento, há raios de luz a cintilar em todo o mundo: nascem crianças, e é dela, da MULHER, para lá de todas as desgraças, que a Humanidade continua imparável, a brotar.

Para as Mulheres da minha vida, as que já partiram, as que continuam nesta estrada (que seja por muitos anos) e eu ao vosso lado, neste dia que é vosso – mas assim é todos os dias – dizer OBRIGADO é pouco.

Manuel João Sá.

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